New Bedford (Review) e o uso de temas controversos nos jogos de tabuleiros

No mundo dos board games, principalmente para quem milita na produção de conteúdo e que consome toneladas de informação sobre jogos novos diariamente, é muito difícil encontrar algo que te surpreenda de forma positiva. 

É tanto hype em cima de qualquer produto que ofereça um diferencial de  marketing que, quando finalmente temos o jogo nas mãos, já sabemos tanto sobre ele que podemos gostar ou não, mas dificilmente nos surpreendemos. 

Pois então, explorando a Amazon outro dia acabei me deparando com “New Bedford: Historic Whaling e Town Building”, um jogo de alocação de trabalhadores do qual eu nada sabia, mas a apresentação do jogo era muito bonita e que vinha por um preço razoável, sem impostos. 

Meio desconfiado, paguei para ver. E não me arrependi! O jogo é ótimo, como veremos. 

Além do review e da contextualização do tema que sempre faço, vou aproveitar o gancho para discutir um pouco como eu vejo a questão do uso de temas controversos em jogos de tabuleiro modernos, usando como centro da discussão aquele que é o jogo que mais suscita debates pelo mundo: Puerto Rico e seus “colonos” representados por discos marrons, mas falarei também de jogos que apresentam uma visão mais completa, como Endeavor, ou até anti-colonialista, como Spirit Island. 

Salvem as Baleias! 

O nosso mundo mudou tão rapidamente nos últimos 150 anos que é difícil para nós hoje entender o quão importante foi a atividade de caça às baleias (acho que “caça” faz muito mais sentido do que “pesca”, embora os dois nomes sejam utilizados, porque você precisa ativamente procurar a baleia e não simplesmente jogar uma rede ou uma linha e esperar ver o que acontece). 

Além do aproveitamento óbvio de sua carne, carcaça e ossos para alimentação e vestuário, extrai-se das baleias, principalmente dos cachalotes, o óleo de baleia, o espermacete (não tem nada a ver com esperma embora os tradutores brasileiros não saibam disso) e o âmbar. Esses produtos possuem um rol quase infinito de utilidades, indo da fabricação de velas a fixação de perfumes, passando pela iluminação.  

Tudo isso tornou a caça às baleias uma atividade extremamente lucrativa, principalmente no século XIX, quando New Bedford, pequena cidade pesqueira da Nova Inglaterra se tornou o centro da atividade no mundo. É dali que partem Ismael e o Capitão Ahab para a sua quixotesca caça a Moby Dick.

A atividade era tão lucrativa que as baleias se tornaram ameaçadas de extinção e chegou-se a um consenso que a caça desenfreada não poderia ser mantida de forma descontrolada. Após a segunda guerra mundial, aproveitou-se a criação da ONU para se criar um comitê internacional de regulação da atividade Baleeira (ICRW – International Convention for the regulations of Whaling) que desde então vem tentando impor limites à atividade.

Uma outra coisa que ajudou a diminuir o ímpeto da atividade foi o desenvolvimento da indústria petrolífera e petroquímica, que permitiu o desenvolvimento de compostos substitutos ao óleo, âmbar e espermacete. 

Hoje a grande maioria dos países assinaram o acordo (cuja versão mais recente é de 2016) que propôs uma total paralisação das atividades baleeiras.  Noruega e Islândia não assinaram o acordo e mantêm atividades comerciais, e  o Japão, embora assine o acordo,  usa a prerrogativa de realizar “expedições científicas” para manter a atividade. 

O jogo

“New Bedford” nos leva ao momento do auge da atividade de Caça às Baleias, quando a pequena cidade de New Bedford cresceu e se tornou seu principal polo nos Estados Unidos. 

Nesse jogo cada participante representa uma companhia baleeira, que busca financiar suas expedições de caça e também investir no desenvolvimento da cidade, aumentando a gama de serviços oferecidos à indústria baleeira local. 

Suas mecânicas principais são a alocação de trabalhadores com a construção de prédios (lembrando um pouco Lords of Waterdeep) que reproduzem a busca de insumos e oferta de serviços em terra, enquanto a atividade de caça em si é reproduzida por um mecanismo de draft muito interessante que explicarei adiante. 

O jogo possui 12 rodadas. Cada jogador recebe seu tabuleiro individual, dois barcos, dois trabalhadores e uma quantidade de recursos a sua escolha contanto que dentro do limite  5 dólares (podendo inclusive manter parte em dinheiro). 

Os recursos são madeira, alimento e tijolo. Madeira e alimento valem U$1.00 e o tijolo vale U$2.00. Os preços são fixos ao longo do jogo. Os trabalhadores são em número fixo e não há como aumentar sua quantidade no jogo (embora haja como utilizá-los de forma parcial, através da construção “inn”). 

O tabuleiro central representa a cidade de New Bedford, que inicia apenas com os locais básicos. Ao lado do tabuleiro, coloca-se o cais/oceano e os tiles de construção.

Cada rodada é constituída de 4 fases: a fase de alocação, a fase de retorno dos navios, a caça em si e por fim uma fase de manutenção. 

A alocação é a principal parte do jogo. É quando cada um vai alocar, no seu turno, um de seus trabalhadores em uma das atividades existentes em New Bedford. Não existe bloqueio nas atividades básicas, todos jogadores podem ir nelas, mas o primeiro que vai a executa com uma vantagem. Já nas construções realizadas pelos jogadores, apenas um trabalhador pode ser alocado. Além disso, deve-se pagar um dólar ao dono do prédio para utilizá-lo (o próprio dono pode usá-lo sem custo). 

A maior parte das construções iniciais oferecem recursos. Exceção é a prefeitura, onde se constroem novos prédios e no cais, onde se prepara e se lança uma expedição ao mar. A principal decisão em relação a isso é quanto ao tempo que se pretende mantê-la no mar, e isso será determinado pela quantidade de comida que você colocará na mesma. Isso determinará quão longe ela irá. 

O oceano está dividido em seis grande áreas, que podem ser entendidas como a distância em relação à costa. Quem está mais longe, escolhe primeiro. Além disso, cada área possui uma ordem de prioridade, sendo a preferência de quem está mais à esquerda.
Quando um barco é lançado ele cairá sempre no espaço vazio mais a esquerda possível na região que ele pode alcançar com a quantidade de provisões que pagou. Cada jogador possui dois barcos e eles são exatamente iguais em termos de mecânica, a diferença de tamanho existe apenas para que você possa reconhecer a ordem de prioridade no mar e o estoque de cada um no tabuleiro individual.

Finda a fase de alocação, processa-se o retorno dos navios. De cima para baixo, todos os navios voltam um nível, se aproximando da costa. Os navios que chegam a costa precisam pagar para processar as baleias caçadas, ou vendê-las inteiras para a prefeitura, pela metade de seu preço de processamento. Se o jogador decidir vender alguma baleia, esta fica à disposição para ser comprada pelos demais jogadores, respeitando a ordem de turno, naquele momento, pelo seu preço nominal, que é pago ao caixa do jogo!

Após resolver o retorno dos barcos que chegaram à costa, a caçada começa: neste o “primeiro jogador” da rodada tira de um saco, que representa o fundo do mar, tiles na quantidade igual a dos navios em ação mais um. Os tiles representam os três tipos de baleias a serem caçadas (sendo o cachalote a mais e valiosa) e “água”, isto é, uma caça infrutífera. Então, na ordem dos navios, cada jogador escolhe um tile para si, colocando na proa do navio em questão (é importante atentar para a ordem dos navios). Quem escolhe por último muitas vezes estará fadado a ficar de mãos abanando. 

Por fim, faz-se a manutenção, retornando os trabalhadores aos jogadores e avançando o marcador de rodadas. 

Ao final da 12a. rodada, todos os navios voltam a costa e os jogadores podem processar suas baleias, seguindo a mesma regra. Vence quem tiver mais pontos de vitória. 

A principal questão estratégica do jogo é que você precisa arrumar dinheiro para processar as baleias que você conseguir caçar. Vender as baleias sem processá-las é abdicar de pontos que provavelmente serão coletados por seus concorrentes. Isso pode ser feito de diversas formas: comprando e vendendo recursos, pegando dinheiro no banco (uma das construções) ou construindo novos prédios que os adversários possam utilizar. 

A posição no mar também é muito importante, pois os barcos que ficam para escolher por último tendem a ter mais dificuldade de caçar qualquer coisa. O farol dá uma forma de manipular a posição dos barcos e estender sua estadia no mar. 

As construções são bem variadas e permitem diversas estratégias diferentes, além de fazerem muito sentido temático (a taverna por exemplo, permite que se ganhe pontos com o mar vazio, pois os marinheiros ficam em terra enchendo a cara, por exemplo). 

New Bedford não é um jogo muito original, mas que brilha na forma como ele lida com os riscos da caça às baleias e as suas consequências (sejam benéficas, como a prosperidade da cidade ou maléficas, como a extinção das baleias) tornando-o um jogo de entrada muito interessante. 

Eu particularmente gostei como a questão das caça desenfreada gera consequências no próprio jogo, tornando mais difícil achar as baleias (que são colocadas no saco numa proporção pré-estabelecida). 

Seus componentes são de excelente qualidade e parece que a sua expansão acrescenta bastante a jogabilidade (que já é bem boa). Eu não joguei ainda o modo solo mas pelo que vi ele traz uma jogabilidade um pouco diferente, com uma espécie de um rondel no tabuleiro do jogador. 

Puerto Rico, o bode expiatório dos “temas difíceis” 

O que eu gostaria de fazer é discutir um pouco se os jogos devem ou não fazer esse papel de servirem de mídia para a discussão de temas reais e controversos, ou se eles devem ser produzidos como brinquedos “seguros”, que não tragam assuntos difíceis para discussão.

Existe muito material sobre o tema, não só nos fóruns de discussão, como na própria academia. Infelizmente, a grande maioria deles parte de uma agenda prévia, onde atira-se primeiro e discute-se depois, pois aparentemente as pessoas deveriam esquecer o passado ao invés de refletir sobre ele.

Puerto Rico, com seus “colonos” marrons,  é o jogo que mais apanha nessas discussões. Existem posts raivosos querendo extirpá-lo da existência nesse mundo, ou teses, supostamente sérias, que assumem que os jogadores desse jogo “podem ser estimulados a pensar de forma eurocentrista, buscando a continuação da opressão de outras civilizações não ocidentais” (o texto está nas referências). 

É verdade que Puerto Rico apresenta o seu problema apenas do ponto de vista do proprietário que está ali maximizando a sua prosperidade, a despeito do bem estar daqueles que explora. Isso faz total sentido dentro do contexto do jogo, mas provavelmente é uma visão incompleta daquela realidade. 

É razoável que muita gente se sinta mal com o tema ou em jogá-lo. Defendo que ninguém seja obrigado a fazê-lo. Não acho que seja só uma questão tratar o jogo de forma abstrata. Se o tema incomoda, a pessoa tem todo direito de não querer jogá-lo e os colegas devem aceitar isso. 

Eu por exemplo não gosto de jogos de sobrevivência ou traição onde você muitas vezes tem que tomar decisões moralmente questionáveis para garantir a sobrevivência. Não é algo que eu tenha vontade de exercitar.

Isso não quer dizer que acho que não devam existir jogos desse tipo e muito menos que as decisões que as pessoas tomem naquele cenário hipotético representem necessariamente o que elas fariam se tivessem que lidar com a situação real. A vida não conta pontos de vitória e, se conta, a pontuação não nos foi claramente explicada. 

E tambem é verdade que existem jogos que lidam com o assunto da escravidão de uma forma muito mais interessante e completa, como Endeavor, onde você pode se beneficiar ou não da escravidão e até lutar por sua manutenção ou abolição de acordo com seus interesses. Isso torna o jogo muito interessante e dinâmico, porque bota em conflito decisões morais e econômicas, talvez tornando mais claro o que estava em jogo na época.  

Isso é motivo para se cancelar Puerto Rico, ou qualquer outro jogo controverso? Eu entendo que não. Pois a discussão nem existiria caso Puerto Rico não existisse, ou não fizesse tanto sucesso, ou tivesse a mecânica utilizada em um tema menos polêmico. 

As suas omissões existem e merecem críticas, e foram estas inspiraram outros designers a fazer jogos mais completos, como o citado Endeavor e até mesmo anti-colonialistas, como o Spirit Island. Para quem não conhece, nesse jogo, os jogadores representam espíritos que habitam uma ilha e que tentam insuflar os nativos a resistirem a colonização dos invasores, que vem de tudo quanto é lado para tomarem a ilha. 

E como lidar com isso?

A primeira maneira e, talvez mais óbvia, é simplesmente não fazer nada. Fez-se um jogo sobre o colonialismo com o ponto de vista do colonizador, interessado tão somente em maximizar sua renda e que para isso usa escravos? Ok, foi assim que a banda tocou, não foi? Paciência, o jogo reflete isso. Bota um disclaimer no manual dizendo que não concorda com as práticas de uma outra época e vida que segue. Ou então, tenta usar um eufemismo, chama os escravos de colonos e torce para ninguém perceber! E aguenta a treta quando ela vier! É o que aconteceu com Puerto Rico. 

Outra forma é fugir do assunto: Tivessem os autores de Puerto Rico usado a sua mecânica em um tema fantasioso, digamos que no universo de Star Wars, onde o jogo se chamaria “Tatooine” e onde os colonos fossem droids vendidos pelos Jawas (aqueles contrabandistas baixinhos que venderam o C3PO e R2D2 para o Tio do Luke), será que haveria discussão parecida e os mesmos desdobramentos?

Acredito que não. Quando foi que você viu alguém reclamar um jogo onde os jogadores são bruxos e utilizam seus goblins ou elfos para resolverem seus serviços sujos?

Coloco eles nas plantações de Índigo, Tio Owen?

A terceira, que considero melhor, é a de tentar fazer o que Endeavor fez, que foi colocar a escravidão no jogo e permitir que os jogadores façam escolhas quanto ao seu uso ou não e com as possíveis consequencias disso. Esse caminho é o que tomaram os designers de New Bedford e o que acredito ser o mais interessante. 

Para finalizar esse ponto: os jogos de tabuleiro são sim uma espécie de mídia e acabam com isso refletindo a visão de sua época. Eles podem e devem servir como insumo para discussões da nossa realidade e estão sujeitos a críticas, mas não devem ser vistos como algo muito maior do que são: elementos de entretenimento inteligente e não ferramenta de adestramento ideológico! 

Conclusão

No excelente filme “Brilho Eterno de uma mente sem lembranças” (se você não viu , saiba que vem Spoiler, pule o parágrafo se isso é um problema), acompanhamos a história de um casal que, estando insatisfeitos com o seu relacionamento, resolvem fazer um tratamento para esquecer totalmente um ao outro. O resultado é que após diversos estranhamentos, ambos acabam se reencontrando e cometendo os mesmos erros novamente, uma vez que perderam a lembrança do que ocorreu, do que deu errado e de como poderia dar certo. 

O mundo moderno vive um dilema parecido. Muitos parecem querer esquecer tudo o que foi feito antes e partir do zero, tabula rasa, para uma nova realidade. Mas o mundo é complexo e a verdade tem vários contornos diferentes. 

Jogos que trazem visões compreensivas de temas polêmicos ou que possam trazer luz sobre assuntos difíceis podem nos ajudar a discutir esses assuntos com pessoas com quem não faríamos isso normalmente. Esse foi um dos maiores benefícios que Puerto Rico trouxe. E para o qual jogos mais modernos, como New Bedford puderam olhar e aprender a lição. 

Nota: 8

Referências:

Artigo acadêmico sobre Puerto Rico e outros jogos: https://www.researchgate.net/publication/324428285_Representations_of_Colonialism_in_Three_Popular_Modern_Board_Games_Puerto_Rico_Struggle_of_Empires_and_Archipelago

Brilho Eterno de uma Mente sem lembranças: https://www.imdb.com/title/tt0338013/?ref_=fn_al_tt_1

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